domingo, 19 de outubro de 2014

Professor Zacarias - A conjuntura nacional e os desafios da esquerda socialista



TEXTO 01
ELEMENTOS CONJUNTURAIS PARA UMA PROPOSIÇÃO DE SAÍDA PELA ESQUERDA (16/08/2015)

|Por Carlos Zacarias, professor do Departamento de História da UFBA

As manifestações que nos últimos meses tomaram as ruas do Brasil assustaram muita gente. Houve quem, na melhor das hipóteses, desconfiasse das boas intenções de brasileiros e brasileiras que, fantasiados com a camisa da CBF/Nike, foram às ruas para esconjurar a corrupção, gritar contra o governo Dilma e, em larga medida, e mais acentuadamente nas manifestações do dia 16/08, pedir o impeachment da presidente. Mas houve também quem visse nos atos de exaltados “patriotas”, enrolados na bandeira do Brasil e entoando o hino nacional, uma manifestação clara de que um novo golpe se anunciava, com características fascistas, remissivas ao golpe ocorrido em 1964.

Efetivamente o quadro não parece ser animador para uma parte dos movimentos sociais que por décadas lutaram por um projeto democrático-popular e após 13 anos assistem o que chamam de “onda conservadora” surgir aparentemente do nada. Tal ofensiva, se é que assim se pode chamar a tal “onda conservadora”, esteve nos últimos meses consubstanciada nas mega-manifestações registradas em março (15), abril (12), e no último domingo, 16/08. Considerando que não parece ser do ordinário do nosso país assistir senhoras com o terço na mão rezando o Pai Nosso em plena Paulista, pessoas com camisas vermelhas sendo hostilizadas, torturadores homenageados e pedidos de intervenção das Forças Armadas por entre cartazes com alusão a Cuba, ao bolivarianismo e ao Foro de São Paulo, há que se admitir que algo de muito diferente se assomou na conjuntura do país neste ano.

De fato, por mais de 50 anos as direitas tradicionais brasileiras deixaram as ruas. Desde as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, ocorridas entre março e abril de 1964, que não se viam multidões tão hostis às bandeiras vermelhas, ao socialismo e a tudo o que lembre, ainda que vagamente, alguma postura de esquerda. Estaríamos, então, prestes a assistirmos um novo golpe de estado contra a nossa democracia e contra um governo com características populares, como outrora ocorreu com Jango? Não parece ser o caso! Mas como explicar, então, a ofensiva conservadora e toda onda de ódio dispendido contra os movimentos sociais dos últimos meses? O que dizer dos imensos atos que moveram milhares (ou milhões, conforme os cálculos) que foram para as ruas com uma única bandeira de luta contra a corrupção e a favor do impeachment? É o que tentaremos responder a seguir.

O governo do PT é um governo burguês atípico
Os trabalhadores que durante os governos petistas fizeram greves nos municípios, nos estados e na federação sabem que o tratamento dispensado pelos dirigentes dos Executivos não varia muito de partido para partido. Em que pese que muitos dos prefeitos ou governadores sejam egressos dos movimentos sociais, em raríssimas situações os governantes receberam os trabalhadores quando estes encamparam greves. Na maior parte do tempo, o tratamento oferecido, além do silêncio e do desdém diante dos ativistas, foi semelhante ao dos governantes dos partidos burgueses tradicionais, como o PSDB e o DEM/PFL. Na Bahia, por exemplo, os trabalhadores da educação em diversas ocasiões se enfrentaram com o governo do ex-dirigente do Sindiquímica Jaques Wagner. Em 2007, professores da educação básica e superior fizeram greves, e o governo enfrentou ambas as paralisações com o corte de salários, arrogância e sistemática propaganda enganosa como faziam os governantes do carlismo. Em 2012, quando professores da educação básica ficaram paralisados por mais de 100 dias, o governador, que contava com uma direção sindical da APLB que lhe era apoiadora, não apenas cortou o salário dos grevistas, como enfrentou a greve com profundo desdém, veiculando mentiras na TV e suspendendo até mesmo o Credcesta, dificultando que os docentes abastecessem suas casas com alimentos. Com Rui Costa não foi diferente, haja vista que os docentes das UEBA precisaram ocupar a SEC depois de mais de 70 dias em greve apenas para ter a atenção merecida da parte de um governo que reduzia a verba da educação, enquanto elogiava policiais que promoviam a chacina da juventude negra na Vila Moisés, isso depois de ameaçar de despejo os docentes pela política que atuou com a mesma truculência da PM de muitos estados.

No final das contas, pode restar a sensação de que o governo do PT é um governo burguês igual a qualquer outro, mas essa é uma forma de tomar a questão apenas pela superfície. O PT governa verdadeiramente para as mesmas classes dominantes que o PSDB e o DEM, mas as frações da burguesia que se enfrentam numa ríspida disputa pela direção dos governos, ora podem ser mais beneficiadas num período do que em outros. Durante os dois mandatos do presidente Lula, houve um reforço do espaço destinado à burguesia compradora no Brasil. Muito especialmente a partir do segundo governo de Lula e do primeiro de Dilma, quando o país se viu diante da necessidade de enfrentar uma crise econômica mundial de dimensões avassaladoras, o ministério da Fazenda, sob a batuta de Guido Mantega e a orientação dos chefes do Executivo, optou por aplicar medias anticíclicas, que combinaram expansão do crédito, diminuição dos juros e renúncia fiscal de produtos da linha branca e de veículos automotivos. As medidas, de um lado, permitiram a continuidade do incremento do mercado interno junto com a expansão da massa salarial, sem prejuízo para os setores do rentismo, sempre beneficiados por uma política de altos superávits primários e rigoroso cumprimento dos contratos.

No fim do primeiro mandato de Dilma, entretanto, como a crise econômica mundial não chegou ao fim, e diante dos inevitáveis riscos que uma política de expansão do crédito significava, com a possibilidade de a inadimplência fugir ao controle diante do endividamento crescente das famílias brasileiras, o governo se viu obrigado a adequar sua rota. Neste caso, após eleições profundamente polarizadas, com rios de dinheiro sendo despejados nas candidaturas de Aécio Neves e Dilma Rousseff, que receberam algo em torno R$ 300 milhões, cada um, o segundo governo de Dilma precisou promover uma profunda inflexão, nem tanto na sua política econômica (também modificada), mas principalmente no seu discurso eleitoral que diante do reacionarismo do PSDB precisou flertar novamente com a esquerda.

Utilizando-se largamente de sua história pessoal, coisa que não havia feito na primeira eleição, quando se negou a discutir o aborto e se aproximou perigosamente dos segmentos fundamentalistas da coalizão, Dilma Rousseff se escorou nas peças publicitárias do “Dilma, coração valente” e do “Dilma, muda mais”, para reeditar o discurso do medo diante da possibilidade de retorno aos tempos do governo de FHC, que muitos brasileiros pretendiam esquecer. O efeito de tais políticas permitiu ao Partido dos Trabalhadores colher uma quantidade imensa de voto útil, até mesmo no primeiro turno.

Não obstante, por não se tratar de um governo burguês típico, mas de um governo de Frente Popular, os mandatos de Lula da Silva e Dilma Rousseff necessitaram repactuar permanentemente a coalizão com os movimentos sociais e as frações burguesas com presença na aliança de classes. Por conta disso, de alguma forma, ocorreu uma espécie de empoderamento dos setores subalternos, que apesar de não terem sido patrocinados pelos governos do PT, se viram favorecidos pela ascensão de um projeto popular, ainda que distorcido e sofrendo um vertiginoso transformismo.  Com efeito, diante do secular déficit de democracia da sociedade brasileira, enquanto houve uma promoção das expectativas das mulheres e dos negros através das políticas compensatórias, de reparação e de modesta distribuição de renda; enquanto os setores tradicionalmente oprimidos em função do conservadorismo dos costumes das nossas classes dominantes, como os LGBT, conseguiram alguma expressão; enquanto os segmentos explorados e oprimidos se empoderaram muito mais na medida das expectativas, do que das reais e efetivas necessidades secularmente negadas, considerando-se que este processo não avançou até as últimas consequências, ele se vê na iminência de retrocessos significativos em função da ofensiva das classes dominantes que se sentiram ameaçadas no seu poder.

Ainda sobre o assunto, como de alguma forma este empoderamento se efetivou muito mais no plano das expectativas e em níveis mínimos de consumo, ressaltem-se a permanência do déficit histórico de democracia, igualitarismo e atenção públicas para com mulheres, negros, e LGBTs que continuam morrendo aos milhares vítimas da desatenção, das chacinas e de todas as formas de extermínio. Isso considerando todas as promessas e esperanças diante de um projeto popular, agora gerido por uma mulher, que não garantiu o direito ao aborto, não tipificou a homofobia, nem promoveu uma séria discussão sobre a necessidade de descriminalização da maconha, elemento que levam milhares de jovens negros a serem assassinados todos os anos nas periferias das grandes e médias cidades brasileiras em função do tráfico de drogas.

Hegemonia fraca
O que está em jogo no Brasil hoje é a tentativa das classes dominantes de retomarem a direção política do país desde que esta foi perdida em 2002, após um curto período de exercício pleno da hegemonia com os governos de FHC. Ou seja, tendo em vista que as classes dominantes não puderam exercer seu domínio pleno com uma direção política de um partido tipicamente burguês, permitiram a ascensão de governos que, para aplicarem uma política burguesa, precisam permanente repactuar sua direção. Não dispondo da total confiança das classes dominantes tradicionais em função dos compromissos históricos que o impulsionaram a direção do Executivo central do país, o PT é absolutamente necessário nesses tempos de hegemonia fraca, mas na primeira oportunidade pode vir a ser descartado do cenário político, como o foram os governos frente populistas.

É verdade que durante as diversas gestões petistas as várias frações da burguesia conviveram em relativa harmonia, aceitando as pequenas concessões dirigidas aos extratos mais baixos da população, desde que continuassem ganhando dinheiro como nunca na história do país, como gostava de dizer Lula. Enquanto isso, em poucos períodos da nossa história os movimentos sociais foram tão generosos com os governos e com os patrões como durante o período Lula. Sobre o assunto, de acordo com o DIEESE, entre 1995 e 2002, anos do governo FHC, ocorreram 648 greves em média por ano no Brasil. Já entre 2003 e 2010, período compreendido entre os dois governos de Lula, o número de greves foi reduzido para 369. Será possível se deduzir que a menor quantidade de greves durante o governo do ex-sindicalista diga respeito ao fato de que a massa salarial média foi incrementada, com diversas categorias auferindo ganhos reais. Entretanto, caso se considere que as greves são os fatores essenciais para a conquista de bons acordos que significam recomposição salarial e acréscimo diante da inflação, haveria uma contradição em termos, tendo em vista que foi no período de menor quantidade de greves (durante os governos de Lula) que os trabalhadores tiveram os maiores aumentos. Não obstante, caso adicionemos a variável “situação econômica”, podemos observar que os salários melhoraram nos períodos de recuperação econômica, e foram reduzidos nos períodos de crise, com rebatimento nas greves que, em todo caso, passaram a ser estimuladas ou desestimuladas pelas direções governistas muito mais na medida do interesse do partido no governo do que dos trabalhadores.

Ainda tomando a variável “situação econômica” cabe registrar que a crise de fins da década de 1990 (Tigres Asiáticos, 1997; Rússia, 1998; México, 1998; e Brasil 1999), ajudou ao decréscimo das greves até seu patamar mais baixo em 2002, quando foram registradas 298 greves, a menor quantidade desde 1983, quando se registraram 250 paralisações. Sobre a crise econômica de fins da década de 1990, antes que as greves chagassem ao seu patamar mais baixo, um fluxo contínuo de pressão permitiu aos trabalhadores organizados promoverem um último grande ato em Brasília empunhando a bandeira do Fora FHC. Com efeito, em 1999, quando a situação econômica do país parecia fugir do controle e quando algo entre 80 e 100 mil trabalhadores marcharam na capital do país, o governo brasileiro contraiu novo empréstimo de 80 bilhões de dólares com o FMI, como forma de contornar a crise.

Todavia, ao lado desses fatores mais objetivos, nossa hipótese é a de que a quantidade de greves se reduz muito mais em função dos elementos subjetivos, pois uma parte importante dessa hegemonia fraca das classes dominantes durante os governos petistas implica na necessidade de repactuar a direção política com os movimentos sociais que precisam ser controlados. Por conta disso, a redução do registro de greves durante os governos Lula tem menos a ver com o incremento da massa salarial dos trabalhadores brasileiros do que com o fato de que as direções sindicais passaram a se acomodar na máquina política, sofrendo também do transformismo da maioria dos dirigentes políticos das altas esferas. Em vista disso, enquanto alguns dirigentes sindicais passaram a assumir cargos públicos de diversas ordens, outros eram recrutados para gerir os fundos de pensão e as inúmeras formas assumidas pelo capital privado durante as transformações sofridas pelo capitalismo brasileiro novamente dirigido pelo estado, especialmente a Reforma da Previdência de 2003 e os anos de oportunidades e concessões à iniciativa privada, algo que se aprofundou durante o governo Dilma.

No final das contas, foi ainda durante os governos Lula, quando a classe trabalhadora desenvolveu uma primeira e fundamental experiência com um governo que praticava um “reformismo quase sem reformas” (Arcary, 2013), que as principais rupturas foram se efetivando, algumas pela direita, como a que gerou o PROIFES em 2004, outras pela esquerda, como aquela que permitiu a construção da Conlutas, depois CSP-Conlutas, também a partir de 2004.

Não vivemos um novo 1964
As manifestações registradas em março, abril e no último domingo podem lembrar as famosas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” de abril de 1964, mas as semelhanças com aqueles anos param por aí. Em 1964 não foi apenas um governo fraco e sem base popular de massa que entrou em colapso, foi um padrão de acumulação protagonizado pelo Estado e lastreado na industrialização de base e que envolvia uma prática política conhecida como populismo que naufragou. Naquela altura, não apenas as diversas frações das classes dominantes conspiraram para a queda de Jango, mas também militares das Forças Armadas, especialmente do Exército, e o governo norte-americano através do embaixador no Brasil Lincoln Gordon.

Quanto ao governo de Goulart, ressalte-se que, apesar de ser uma expressão do nacionalismo burguês com penetração nos sindicatos através do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), este quase não contava com dispositivos de massa que pudessem assumir a sua defesa. Ainda assim, em meio aos conflitos abertos na esteira de um imenso ascenso popular expresso nos movimentos sociais da cidade e do campo, como as Ligas Camponesas, o CGT, a UNE, com desdobramentos nas vanguardas culturais do cinema, teatro, música e literatura, uma pressão pela esquerda obrigou o governo a assumir o compromisso com algumas das reformas estruturais exigidas pelo país há tempos. Nesse sentido, o Comício da Central do Brasil de 13 de março de 1964 consubstancia aquela inflexão que vinha ao encontro de uma parte das expectativas de diversos setores, muito embora se mantivesse nos marcos do reformismo e o nacionalismo burguês.

O Comício da Central do Brasil foi sintomático da crise revolucionária vivida pelo país naqueles anos, aprofundada pelas revoltas dos militares (sargentos e marinheiros) que desafiavam a ordem e punham em causa a hierarquia. Tal ascenso popular, se nos remete, em alguma medida, para as formas de empoderamento referidas acima no período recente, no caso do Brasil lulista não encontram paralelo com a movimentação do governo atual, que não foi capaz de produzir um único deslocamento à esquerda. Da mesma forma tampouco se permite qualquer analogia com o descontentamento das classes dominantes e das frações burguesas no presente, haja vista que diferentemente das de 1964, quando as frações da burguesia associada ao capital internacional conspiravam abertamente contra a democracia através do complexo IPES-IBAD, no Brasil de Lula e Dilma a burguesia, especialmente o resntismo, impõe sua lógica, independentemente da necessidade de repactuação de compromissos da parte do lulismo.

É verdade que o forte descontentamento que desceu às ruas nos últimos tempos é incentivado por setores burgueses. Quanto a isso, não podem haver dúvidas de que os partidos burgueses tradicionais, especialmente o PSDB e o DEM, mas também o PMDB, chantageiam permanentemente o governo para que este assuma ainda mais intensamente uma agenda política conservadora. Entretanto, parece ser preferível às classes dominantes evitar o colapso do país, já que as possiblidades e de um golpe ou mesmo de um “golpe branco” através do impeachment de Dilma Rousseff é por demais arriscada, pois implicaria em risco de uma convulsão social de resultado incerto, pois se se considera que o PT dispõe de uma base social bastante mais consolidada do que Jango, seria improvável que qualquer medida intempestiva não desencadeasse um conflito de grandes proporções.

Por que não devemos ir ao ato do dia 20
Por tudo o que foi dito, não podem restar dúvidas de que é um erro acreditar que a democracia esteja correndo algum risco no Brasil neste momento. Isto não quer dizer que as classes dominantes não possam reavaliar sua postura mais adiante, mas não parece que o caminho preferencial seja a promoção do impeachment, reivindicado largamente pelos que foram às ruas no dia 16, e muito menos o golpe, reivindicado por setores mais exaltados, francamente fascistizantes.

Ainda assim não está dado que o governo do PT, que praticou toda a espécie de ilegalidade eleitoral, como muitos dos partidos que governam estados e municípios e o próprio PSDB, que o antecedeu na presidência, não possa ser emparedado em função das “pedaladas fiscais” ou do esquema de propina da Petrobrás. Não obstante, a exasperação de setores médios com as denúncias de corrupção que assolaram o país nos últimos meses, apesar de fazerem grande pressão sobre os partidos tradicionais burgueses, não representam para a grande burguesia que esta deve trabalhar para derrubar o governo do PT antes de 2018. Isso porque as várias frações da burguesia seguem se acomodando diante das últimas movimentações do governo. Este, após aprovar as MPs 664 e 665, que retira direitos dos trabalhadores, agora se prepara para levar adiante a chamada “Agenda Brasil”, um conjunto de medidas bem ao gosto dos setores do agronegócios, do capital financeiro, e da burguesia compradora, todos com grande presença no governo de Dilma.

Em virtude deste movimento de acomodação que tirou o governo das cordas nas últimas semanas, setores insuspeitas de serem governistas anunciaram posições pela governabilidade, como as Organizações Globo, o grupo FSP, a FIRJAN, a FIESP e a FIEB, o que pode servir para acalmar os ânimos no próximo período. Não obstante, em vista desta nova repactuação, o governo Dilma terá que ceder ainda mais, intensificando o ajuste fiscal e acentuando os cortes nos setores essenciais, como saúde, educação, previdência e reforma agrária.

Por seu turno, a postura das centrais governistas que se aproveitavam do medo para imprimirem uma espécie de chantagem aos movimentos sociais, pode cair no vazio. Até o momento, contudo, o que está apontado é que o ato convocado para o próximo dia 20 está mantido e que não será governista (sic), mas um ato por “Direitos, Liberdade e democracia”, ou como consta ainda na convocatória “Mobilização em todo o país contra a direita e o ajuste fiscal”. Mas será mesmo que o ato do dia 20 não terá um caráter governista? O fato de o PT não convocar, mas apenas o PCdoB e o PSOL, junto com movimentos sociais importantes como o MTST, demonstraria que o ato não será governista? Parece improvável!

Para quem assistiu a reunião de Dilma Rousseff com as mulheres da “Marcha das Margaridas” e depois com os movimentos sociais na última semana, não pode restar dúvida de que o governo e as entidades governistas, como a CUT, CTB e UNE, além dos movimentos sociais pró-governo, como o MST, se utilizarão dos atos para blindar o governo e reforçar seu apoio perdido ao longo deste ano. Quanto a isto, quem assistiu o vídeo da fala do dirigente do MTST, Guilherme Boulos, que dirigiu cobranças a Dilma e depois foi trocar sorrisos, beijos e abraços com a presidente, no dia seguinte a votação da Lei Antiterrorismo e um pouco antes de Dilma seguir negociando ainda mais ataques aos trabalhadores, pode ficar com a sensação de que alguma coisa não está funcionando bem neste discurso que critica o governo, mas lhe dedica afagos.

Obviamente que o impeachment não interessa aos trabalhadores, porque não se pode pôr a direção política do país nas mãos de Michel Temer, Eduardo Cunha ou de um Congresso ainda mais corrupto do que o Executivo. Todavia, como dissemos, esta alternativa, muito embora não esteja definitivamente descartada, parece ainda mais improvável diante dos últimos acontecimentos e acordos pela governabilidade.

Por fim, cabe ressaltar que a ruptura de um importante setor da classe trabalhadora com o governo Dilma, algo que se anunciou nas Jornadas de Junho de 2013, que alterou a correlação de forças para uma situação aberta e indefinida, deve ser potencializada pelo melhor da vanguarda dos movimentos sociais que já haviam rompido com o governo. Neste sentido, cerrar fileiras com o governismo no dia 20 significará dar um passo atrás nessa ruptura, porque ao invés de sepultar as ilusões do engodo do “governo em disputa”, ou as ilusões da chantagem do medo quanto ao risco de golpe ou de impeachment, voltaremos a acreditar que será possível construir um campo pela esquerda com os remanescentes do lulismo, incluindo o próprio Lula.  O que é preciso fazer é seguir em frente, construindo as greves no serviço público, exigindo das direções governistas que rompam com o governo e assumam a necessidade de construir a greve geral, contra os ataques do governo, contra o ajuste fiscal, pela construção de uma alternativa verdadeiramente de esquerda, protagonizada pelos trabalhadores.

Por fim a iniciativa da construção da plenária Unidade de Ação, que reuniu no último dia 03/08, em São Paulo, cerca de 65 entidades sindicais, populares, estudantis, políticas e partidárias, entre as quais a CSP-Conlutas e o ANDES-SN, apontam para a possibilidade de  uma alternativa concreta para organizar as lutas, chamando uma ampla mobilização nacional para o 7 de setembro, com organização de plenárias nos estados, contra o Programa de Proteção ao Emprego (PPE) e contra as medidas de ajuste fiscal. E para os que dizem que lavamos as mãos neste momento tão difícil, respondemos ainda com mais luta, mais greve e mais mobilização, no espírito de sepultar as ilusões com o governismo e de construir alternativas que verdadeiramente interessem à classe trabalhadora do país.

TEXTO 02
BASTA DE DILMA, CUNHA E AÉCIO: CONSTRUIR A ALTERNATIVA DOS TRABALHADORES (12/10/2015)

A propósito do texto “A esquerda socialista e o impeachment”, divulgado pelo professor Luís Filgueiras como subsídio a um debate que realizaria no CRH, valem algumas palavras a título de polêmica com o eminente colega, professor titular da Faculdade de Economia e com larga produção intelectual sobre o Brasil recente. Em primeiro lugar convém dizer da importância de se debater a conjuntura nos termos colocados no presente momento do país. Tal oportunidade se coloca no contexto de uma greve que atinge as IFES há cerca de 120 dias, greve esta que se situa como anteparo aos ataques desferidos pelo governo federal à educação pública no país só semelhantes àqueles dos anos 1990, tempos dos governos de FHC. É preciso dizer da necessidade de se estabelecer polêmicas francas com companheiros que na maior parte do tempo estão ombro a ombro conosco na luta por uma universidade pública, gratuita e de qualidade e por um Brasil mais justo.

A greve que ultrapassa quatro meses de duração se insere numa conjuntura de imensa crise econômica e política. Nos últimos 120 dias o real foi substancialmente depreciado, com o dólar rompendo a barreira dos R$ 4,00, o Brasil teve nota rebaixada numa das agências de risco que retirou o grau de investimento no país, favorecendo ao movimento especulativo nas bolsas, enquanto a inflação permanece acima do teto de 6,5% e as previsões de redução do PIB são revistas para patamares ainda piores do que aqueles anunciados no início do ano, sugerindo-se um longo período de recessão. Ao lado da crise econômica uma crise política de grandes proporções parece ocupar as pautas do governo, principalmente após as manifestações de 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto, quando setores abertamente de direita acaudilharam milhares de pessoas para ocupar as ruas em protesto contra a corrupção e o governo Dilma. Sobre o assunto, nem mesmo as manifestações convocadas pelo sindicalismo e pelos movimentos sociais mais diretamente governista da CUT, CTB, da UNE e do MST, com a última adesão do MTST e de setores majoritários do PSOL no dia 20/08, puderam oferecer alternativas de real e efetiva defesa do governo, dado o seu caráter bastante minoritário se comparados aos atos da direita aqui mencionados. Ou seja, enquanto a crise econômica avança e impõe ao governo a necessidade de acentuar sua opção pelo setor financeiro, por vezes tendo que preterir frações da burguesia em função dos acordos que priorizam o rentismo, a crise política é, por vezes, arrefecida e por vezes recrudescida pelo fato de que as negociações passam cada vez mais ao largo da repactuação sempre necessária com os movimentos sociais que apoiam o PT, tornando o partido “livre” para negociar apenas com os de cima, enquanto pretere os setores subalternos.

A crise política que o país atravessa é de grandes proporções, mas sua solução não pode ser pensada apenas nos termos que as classes dominantes pretendem impor ao restante do país. Da parte dos trabalhadores, o fato de que o governo do PT começa a sofrer sucessivas rupturas que vão muito além do funcionalismo público que já havia rompido com o governo ainda no primeiro mandato de Lula, deve ser considerado como um fato positivo. Considerando que foi o sindicalismo governista o principal sustentáculo do lulismo na última década e meia, não há porque considerar como regressivo a ruptura que hoje vem se efetuando da parte de setores dos trabalhadores que hoje emprestam irrisório apoio a um governo que só tem a lhe oferecer retirada de direitos, ajuste econômico e opção pelos ricos.

Como é sabido, uma correta apreciação da correlação de forças, se não deve subestimar as capacidades das classes dominantes e dos agentes políticos em conflito e, consequentemente, superestimar as reais possibilidades dos trabalhadores, não pode negligenciar a dialética da luta de classes e das contendas em curso. Em vista disso, soa estranho que o professor Filgueiras se refira às manifestações que no dia 18/09 ocuparam as ruas da capital paulista e de algumas cidades do país como atos que são favoráveis ao impeachment e coincidem “com o objetivo maior das grandes manifestações da direita econômica, política e moralista ocorridas nos últimos meses no país”. Não parece adequado tomar manifestações que foram chamadas por organizações sindicais, populares e partidárias do campo dos trabalhadores, que portavam bandeiras e palavras de ordem típicas da nossa classe, com atos convocados pelo Movimento Brasil Livre (MBL), Movimento Vem pra Rua, SOS Forças Armadas e partidos como o PSDB e o DEM. Não parece correto dizer que camisas e bandeiras vermelhas vestidas e envergadas por lutadores da CSP-Conlutas, da ANEL, do PSTU, do PCB e setores do PSOL, além de diversas outras organizações, se confundam com a tonalidade moralista e verde e amarela das manifestações das direitas. Não se pode dizer que os manifestantes que foram às ruas no dia 18 e que são os mesmos que protagonizam as greves dos serviços públicos, dos metalúrgicos, dos rodoviários e metroviários, dos garis e de outras categorias pretendam que a solução dos conflitos e da crise passe pelo impeachment da presidente. Por certo há diferenças entre o “Basta de DILMA, PT, PSDB, PMDB” e o chamado a uma greve geral feito pelos setores que compareceram às ruas no dia 18/09 e o tema anticorrupção e a defesa do impeachment que motiva os manifestantes de 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto. Os trabalhadores sabem da diferença de uma coisa e outra e o professor Filgueras também! Não fosse assim a assembleia dos docentes da UFBA, que derrotou a proposta de ir para as ruas no dia 20/09 por duas vezes, entendendo tratar-se de um ato pró-governo, logo em seguida aprovou a participação nos atos do dia 18 na expectativa de enfrentamento com o governo que ataca os trabalhadores.

Ou seja, se devemos fazer o debate, precisamos começar por esclarecer o conteúdo das nossas diferenças, ainda que de forma fraternal e respeitosa. É justo que o colega tenha dúvidas se a defesa do “Basta de Dilma, Cunha e Aécio” é oportuno no momento; é possível que se esteja desconfiado se as condições atuais e a correlação de forças são propícias para que os trabalhadores coloquem uma bandeira de características ofensivas num momento que pode indicar que devemos ficar na defensiva. As dúvidas são legítimas e muitos militantes honestos tem questionado a este respeito, mas onde é que está colocado que em política só há dois lados? Numa palavra, se há contradições que determinam a existência de dois campos na política e essas contradições não são mediadas pela relação capital-trabalho e pela luta de classes, isso não é, em absoluto, um dado da realidade, mas uma interpretação da qual discordamos.

A questão principal, portanto, não é se estamos ou não a favor de Dilma e contra a direita, porque raciocinar assim é dizer que devemos escolher entre o pior e o menos pior, ainda que não possamos ter a certeza de quem é pior de fato se não experimentamos os dois. Lutamos contra as direitas tradicionais e também aquela que está no governo, mas lutamos principalmente contra nossos inimigos de classe do governo e de fora dele. A questão é que os trabalhadores e suas organizações não podem ficar à mercê do governismo e da oposição de direita, especialmente no momento em que uma parcela significativa de lutadores começa a romper de fato com o governo para propor alternativas. Pelo caminho proposto pelo professor Filgueiras, o ideal seria compormos uma frente com os setores que estão fora do governo, com aqueles que até ontem estavam no governo e mesmo com aqueles que não demonstram real disposição de romper com o governismo, mas procuram se relocalizar criticando pontualmente a política econômica de Dilma/Levy. Obviamente que o que está em jogo, neste caso, é a possibilidade de reeditar o projeto democrático-popular e salvar as figuras de Lula e dos parlamentares petistas, e também do PCdoB, no momento em que o governo está bastante fragilizado e loteando os cargos com o PMDB de Cunha, Temer e Renan para garantir a governabilidade. A propósito, no último dia 05/10 mais uma vez os governistas ocuparam as ruas, desta vez sob o argumento do defenderem a Petrobrás, mas o ato da Frente Brasil Popular não pôde esconder seu caráter pró-governo.

O professor Filgueiras cita Maquiavel e sua noção de fortuna e virtu para reivindicar as palavras magistrais da abertura do texto O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, onde se diz que “os homens fazem a história, mas não em condições de sua livre escolha, mas em condições que lhe foram legadas pelo passado”. Se seguisse um pouco mais adiante no texto, ainda no mesmo parágrafo, podia continuar citando Marx, quando ele diz que “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. O colega tem razões de temer a volta da direita e tem razões de supor que pode estar em curso um golpe à la Paraguai no Brasil, afinal de contas, a lembrança de 31 de março de 1964, e o recente episódio que culminou com a deposição do presidente Lugo no Paraguai, ainda é fresca entre nós. Entretanto, o passado não pode oprimir nosso cérebro “como um pesadelo”, porque precisamos tirar as lições da história para não repeti-la como farsa. Há algumas semanas eu, o professor Filgueiras e mais dois colegas debatemos a conjuntura e na altura eu argumentei que não me parecia provável que estejamos em vias de sofrer um golpe. Sobre o assunto, em 16/08, escrevi:

É verdade que o forte descontentamento que desceu às ruas nos últimos tempos é incentivado por setores burgueses. Quanto a isso, não podem haver dúvidas de que os partidos burgueses tradicionais, especialmente o PSDB e o DEM, mas também o PMDB, chantageiam permanentemente o governo para que este assuma ainda mais intensamente uma agenda política conservadora. Entretanto, parece ser preferível às classes dominantes evitar o colapso do país, já que as possiblidades e de um golpe ou mesmo de um “golpe branco” através do impeachment de Dilma Rousseff é por demais arriscada, pois implicaria em risco de uma convulsão social de resultado incerto, pois se se considera que o PT dispõe de uma base social bastante mais consolidada do que Jango, seria improvável que qualquer medida intempestiva não desencadeasse um conflito de grandes proporções.

As palavras ditas acima permanecem atuais, muito embora os riscos e as possibilidades de impeachment, que devem ser medidos semana a semana pelas frações burguesas descontentes com os rumos do governo, precisam também ser avaliados por nós, da esquerda socialista. A novidade das últimas semanas, entretanto, não é o recrudescimento da crise em função do rebaixamento da nota do Brasil numa agência de risco ou ainda mais elementos que robustecem a operação Lava-Jato. A novidade é justamente a entrada em cena da classe trabalhadora, ainda que de maneira embrionária, ainda que de forma minoritária, ainda que tendo muita desconfiança dos lutadores e dos setores combativos que se expressam nas várias greves pelo Brasil. As lições do passado devem nos servir para evitarmos o reboquismo, como ocorrido em 1964, quando as forças populares depositaram todas as suas esperanças no governo de João Goulart, bastante mais à esquerda do que o governo Dilma, diga-se de passagem. Quanto a isso, não temos dúvidas de que a principal tarefa do momento é sepultar as ilusões que ainda restam neste governo e tentar construir confiança entre os trabalhadores, para que estes edifiquem a real e efetiva alternativa que passa pela pavimentação do caminho até o poder. E se o percurso é tortuoso, não há porque procurarmos atalhos, pois os passos só podem ser dados com as nossas próprias pernas.

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